Meu pai morreu em 1976, aos 29
anos, quando eu tinha 5. Meu irmão tinha 7 e minha irmã, apenas 10 meses. Crescemos
sem pai e sua ausência nos segue vida afora. Mesmo 40 anos depois, não há compensação
que nos livre da saudade ou que sane essa dorzinha que nos acompanha,
principalmente quando se aproxima e chega o Dia dos Pais. Mesmo tanto tempo
depois, guardo lembranças do quão marcante foi sua passagem por nossas vidas.
Lembro de afagos, de histórias
contadas debaixo da mangueira em frente a nossa casa no Sítio Barro Preto, dos
dias festivos de colheita e ensacamento do algodão, dos passeios a cavalo – meu
irmão na garupa, abraçado a sua cintura, eu na frente da sela, protegida por
seus braços. Aos domingos, quando voltava da feira, descia do cavalo e ficava
lá, debaixo da mangueira, esperando um copo d’água servido por mim ou meu irmão,
o que conseguisse chegar primeiro. Na sequência, estávamos autorizados a
revolver-lhe os bolsos, invariavelmente cheios de balas e guloseimas. Velhos tempos.
Belos dias.
Um dia, quando eu tinha uns 4
anos, meu irmão foi incumbido de banhar o cavalo no açude. Não sei
se se atribui ao tempo ou à liberdade da vida no campo, mas não havia nada
demais em designar uma criança de 6 anos para lavar um cavalo, acompanhado de outra de 4, que fazia figuração.
Na ida, a recomendação: “Nada de montar o cavalo molhado”. Ouvimos, mas
esquecemos.
Cavalo limpo, molhado e liso, preso
apenas a uma corda, pareceu-nos que voltar montados agilizaria a atividade. Habilidosos, subimos e lá
íamos bem felizes, quando, numa subidinha antes de casa, deslizamos e caímos
debaixo de uma árvore cheia de espinhos, conhecida como mau-vizinho. Pernas
lanhadas pelos espinhos, cavalo perdido e todo lambuzado, lá fomos nós chorando,
desesperados.
Meu pai nos abordou, disse que avisara
para não montarmos e pediu que minha mãe nos limpasse, enquanto corria ao
cercado para laçar o cavalo, que precisou de um novo banho. Na volta,
aparentando calma, perguntou por que havíamos montado, mas permanecemos mudos e
cabisbaixos. “Para aprender a não desobedecer, vão ganhar, cada um, uma palmada”,
anunciou, antes da prática, que nos fez chorar pelo resto da tarde.
Foi a única vez em que nos
castigou. Enquanto houve tempo, cuidou de nós e nos protegeu. Agricultor,
cuidava da própria plantação e do sítio onde morávamos, até o dia em que, de
tão seca, a terra parou de produzir. Então, decidiu que emigraríamos para São
Paulo, como faziam, àquele tempo, tantas famílias nordestinas. Mamãe
licenciou-se do trabalho como professora e lá fomos nós para uma vida
completamente nova. Trocamos a contemplação do por-do-sol alaranjado da Serra
Grande por finais de tarde à frente da TV e as brincadeiras ao ar livre pela
vida de portas fechadas e uns poucos domingos no parque.
Seis meses depois, acordei no
meio da noite com a casa cheia de gente. Vi minha mãe chorando, abraçada a uma
vizinha. Elas contaram que o papai tinha passado mal e estava no hospital, mas
já sabiam que estava morto, vítima de infarto fulminante.
O dia triste que se seguiu
ficou eternizado. Minha tia me vestiu com uma roupa nova – casaco preto e saia
azul –, deixou minha irmãzinha na casa da vizinha e me guiou, junto com meu
irmão, para um dia longo e triste, vivido entre o choro e o nó na garganta. E
enquanto aquele dia passava, fui guardando, numa nuvenzinha, os dias em que íamos
pescar, jogar milho para as galinhas, tirar jabuticabas da cor dos meus olhos,
como ele gostava de dizer; colher mangas e maracujá-açu ou descansar na rede
armada no alpendre, olhando as nuvens, enquanto ele prendia uma orquídea roxa
ao troco do ipê amarelo que sombreava nossas tardes.
A vida seguiu, Mamãe se fez pai e
quando fiz 30 anos, a vida me fez pai também. “Pãe”, como diz minha Bia. E as
lições de cuidado, carinho e afeto, responsabilidade e parceria ministradas por
meu pai e minha mãe, que com firmeza e determinação, assumiu as rédeas, depois
que ele partiu, continuam a me guiar. Ah! Sou totalmente contra a palmada ou
qualquer outro tipo de castigo físico em crianças. Mas não sinto nenhuma mágoa por
essa história, ela é mais uma do meu pequeno baú de lembranças do meu pai. Que
talvez não fosse perfeito, em sua pouca idade, mas sabia ser Pai. E 40 anos depois,
ainda o é. Como é minha mãe e procuro ser, à sombra do seu exemplo. Feliz Dia
dos Pais! E pais, sejam pais.