domingo, 9 de agosto de 2015

Pais, sejam Pais






Meu pai morreu em 1976, aos 29 anos, quando eu tinha 5. Meu irmão tinha 7 e minha irmã, apenas 10 meses. Crescemos sem pai e sua ausência nos segue vida afora. Mesmo 40 anos depois, não há compensação que nos livre da saudade ou que sane essa dorzinha que nos acompanha, principalmente quando se aproxima e chega o Dia dos Pais. Mesmo tanto tempo depois, guardo lembranças do quão marcante foi sua passagem por nossas vidas.   

Lembro de afagos, de histórias contadas debaixo da mangueira em frente a nossa casa no Sítio Barro Preto, dos dias festivos de colheita e ensacamento do algodão, dos passeios a cavalo – meu irmão na garupa, abraçado a sua cintura, eu na frente da sela, protegida por seus braços. Aos domingos, quando voltava da feira, descia do cavalo e ficava lá, debaixo da mangueira, esperando um copo d’água servido por mim ou meu irmão, o que conseguisse chegar primeiro. Na sequência, estávamos autorizados a revolver-lhe os bolsos, invariavelmente cheios de balas e guloseimas. Velhos tempos. Belos dias.


Um dia, quando eu tinha uns 4 anos, meu irmão foi incumbido de banhar o cavalo no açude. Não sei se se atribui ao tempo ou à liberdade da vida no campo, mas não havia nada demais em designar uma criança de 6 anos para lavar um cavalo, acompanhado de outra de 4, que fazia figuração. Na ida, a recomendação: “Nada de montar o cavalo molhado”. Ouvimos, mas esquecemos.


Cavalo limpo, molhado e liso, preso apenas a uma corda, pareceu-nos que voltar montados agilizaria a atividade. Habilidosos, subimos e lá íamos bem felizes, quando, numa subidinha antes de casa, deslizamos e caímos debaixo de uma árvore cheia de espinhos, conhecida como mau-vizinho. Pernas lanhadas pelos espinhos, cavalo perdido e todo lambuzado, lá fomos nós chorando, desesperados.


Meu pai nos abordou, disse que avisara para não montarmos e pediu que minha mãe nos limpasse, enquanto corria ao cercado para laçar o cavalo, que precisou de um novo banho. Na volta, aparentando calma, perguntou por que havíamos montado, mas permanecemos mudos e cabisbaixos. “Para aprender a não desobedecer, vão ganhar, cada um, uma palmada”, anunciou, antes da prática, que nos fez chorar pelo resto da tarde.


Foi a única vez em que nos castigou. Enquanto houve tempo, cuidou de nós e nos protegeu. Agricultor, cuidava da própria plantação e do sítio onde morávamos, até o dia em que, de tão seca, a terra parou de produzir. Então, decidiu que emigraríamos para São Paulo, como faziam, àquele tempo, tantas famílias nordestinas. Mamãe licenciou-se do trabalho como professora e lá fomos nós para uma vida completamente nova. Trocamos a contemplação do por-do-sol alaranjado da Serra Grande por finais de tarde à frente da TV e as brincadeiras ao ar livre pela vida de portas fechadas e uns poucos domingos no parque.


Seis meses depois, acordei no meio da noite com a casa cheia de gente. Vi minha mãe chorando, abraçada a uma vizinha. Elas contaram que o papai tinha passado mal e estava no hospital, mas já sabiam que estava morto, vítima de infarto fulminante. 

O dia triste que se seguiu ficou eternizado. Minha tia me vestiu com uma roupa nova – casaco preto e saia azul –, deixou minha irmãzinha na casa da vizinha e me guiou, junto com meu irmão, para um dia longo e triste, vivido entre o choro e o nó na garganta. E enquanto aquele dia passava, fui guardando, numa nuvenzinha, os dias em que íamos pescar, jogar milho para as galinhas, tirar jabuticabas da cor dos meus olhos, como ele gostava de dizer; colher mangas e maracujá-açu ou descansar na rede armada no alpendre, olhando as nuvens, enquanto ele prendia uma orquídea roxa ao troco do ipê amarelo que sombreava nossas tardes.


A vida seguiu, Mamãe se fez pai e quando fiz 30 anos, a vida me fez pai também. “Pãe”, como diz minha Bia. E as lições de cuidado, carinho e afeto, responsabilidade e parceria ministradas por meu pai e minha mãe, que com firmeza e determinação, assumiu as rédeas, depois que ele partiu, continuam a me guiar. Ah! Sou totalmente contra a palmada ou qualquer outro tipo de castigo físico em crianças. Mas não sinto nenhuma mágoa por essa história, ela é mais uma do meu pequeno baú de lembranças do meu pai. Que talvez não fosse perfeito, em sua pouca idade, mas sabia ser Pai. E 40 anos depois, ainda o é. Como é minha mãe e procuro ser, à sombra do seu exemplo. Feliz Dia dos Pais! E pais, sejam pais.