segunda-feira, 30 de maio de 2016

Protegei-nos dos atos não consentidos


A notícia de mais duas meninas violadas é aterradora. Provoca ímpetos de responder a cada comentário atentatório a sua condição de vítima. A cada um que tenta justificar a conduta de um, dois ou "mais de 30", conforme gravação divulgada na semana passada. A cada um dentre os milhares que viram e compartilharam as imagens de uma menina nua e ensanguentada. A cada um dos que se divertiram (como é possível?) com a situação.
Todos os acima citados, exceto a vítima, todos a violaram. Tanto o que, numa gravação atribuída por sua defesa a uma letra de música (???!!!), informa: "Mais de trinta (...). Entendeu, ou não entendeu?" quanto o outro que, após admitir que "apenas gravou" as imagens, de todas nós  escarneceu, ao chegar sorridente à delegacia. Todos os que "apenas compartilharam" as imagens. Todos a violaram, inclusive a imprensa que chama as meninas vitimadas de "menor", sendo elas que carregam a dor física e psicológica de todas as meninas e mulheres. Todas. 
Essas meninas carregam as dores e o medo de todas nós que ficamos aterrorizadas quando dois meninos da vizinhança nos puxaram pelo cabelo, quando voltávamos da escola. De todas nós que fomos desrespeitadas quando pegamos carona com um colega de trabalho. De todas nós que preferimos atrasar a prestação do apartamento para completar a entrada do carro porque nunca mais nos sentiremos seguras de estar à noite num ponto de ônibus na companhia de um homem desconhecido. De todas nós que sentimos medo de passar por um lugar, a qualquer hora do dia, onde haja um grupo de homens, simplesmente por sermos mulheres. 
Sintam-se violadores e estupradores todos os que estiveram naquela cena, naquele "abatedouro", para usar a palavra usada pelo delegado para descrever a cena do crime. Os que a tocaram e os que assistiram, filmaram, divulgaram. Sintam-se violadores todos os que compartilharam imagens da violação. Sintam-se violadores todos os que se escandalizaram com a foto íntima que uma menina mandou para o namorado mau-caráter que a compartilhou. E toda uma cidade se escandalizou. E compartilhou. E escarneceu. E tripudiou sobre a intimidade que a menina não lhe concedera. Essa menina também é vítima. "Mas não foi ela quem quis mostrar?", perguntam as "vestais" para justificar que não apenas viram, como se escandalizaram e depois passaram adiante. Sim, ela quis se mostrar. Mas apenas a pessoa de sua intimidade. E ele a traiu, tornando pública a intimidade que ela lhe confiara. Traiu sua confiança, violou sua intimidade.  E não. Não. Não. Não foi concedido a mais ninguém ver, escandalizar-se ou compartilhar, a não ser para denunciar a instituição competente a violação inicial. Mas isso ninguém fez, por "não ser da sua conta" agir para ajudar.
Será mesmo necessário contar quantos homens tocaram em uma menina desacordada, exposta nua e ensanguentada aos olhos de quantos queiram ver, para admitir que houve violação? Será mesmo necessário contar quantos estiveram naquela cena horrenda para considerar que houve crime?
Atenção, poder público! Não trate o estupro apenas como caso de polícia. É caso de psicólogo, de advogado defensor dos direitos humanos, de promotoria e de delegacia especializadas. Caso de instituições de proteção psicossocial à vítima, de depoimento especial [http://migre.me/tYoRu ].  
Atenção, todas as pessoas! Protegei as meninas. Protegei as crianças, meninas e mulheres de todos os olhares, palavras e atos não consentidos. 
E aos que contestam a existência de uma cultura do estupro, pensem em quantas vezes ouviram: "Amarrem sua novilha, que o meu boi anda solto".  "Também, com aquela roupa..." "Estava pedindo". "O que fazia, sozinha, àquela hora, naquele lugar?" De forma mais notória, tem aquela do formador de opinião para quem o estupro pode ser "uma caridade". Ou a do político que afirma ser um "presente de Deus" a amiga ser acordada por cinco policiais em diligência. Ou a do parlamentar que considera o estupro um "merecimento".  E tem o humorista que divulga nota, afirmando terem "retirado de contexto" declaração sobre ser "'gênio' o cara que esperou uma gostosa ficar bêbada para transar com ela". Como se houvesse contexto justificável para um comentário desses, todos proferidos naturalmente, alguns escritos e divulgados como coisa relevante, todos repetidos por serem culturalmente aceitos. Ou o comportamento público do delegado inicialmente designado para investigar as denúncias, desde sempre voltado a desqualificar a vítima.
A quem acha inofensivo educar meninos e meninas como potenciais "bois" e "novilhas para o abate", respectivamente, lembre-se que mães, filhas, irmãs, namoradas, esposas são todas mulheres. E do medo que a gente sente. 
Para saber se houve ou não abuso, há apenas uma pergunta a ser respondida: Consentiu? Se a resposta for "NÃO", significa NÃO.